Folhelho Burgess: a rocha que conta a história da fauna cambriana

Folhelho Burgess: a rocha que conta a história da fauna cambriana

Ao analisarmos o desenvolvimento das geociências, iremos nos deparar com numerosos acontecimentos que mudaram o modo como determinados assuntos eram compreendidos dentro da comunidade acadêmica, trazendo elucidações sobre conceitos antes mal interpretados ou até mesmo inexplicados.

A descoberta do Folhelho Burgess e seu consequente estudo é um ótimo exemplo de tais episódios, pois permitiu uma melhor concepção do passado geológico e da vida que habitava o planeta Terra em diferentes eras.

O que torna o folhelho Burgess tão importante?

Como bem sabemos, folhelhos são rochas sedimentares de granulometria fina que se caracterizam pela fissilidade, o que gera partição da rocha em placas. Por serem de origem diagenética, possibilitam a conservação de organismos que viveram em tempos pretéritos.

Esta é a condição que encontramos em Burgess, no folhelho localizado nas Montanhas Rochosas em Colúmbia Britânica, Canadá, no Parque Nacional de Yoho.

Visão do pico da montanha de Burgess. Fonte: Adobe Stock

Os fósseis de 530 milhões de anos tornam o sítio um objeto de estudos fascinante para paleontólogos, geólogos e outros cientistas, porque trazem noções a respeito da rápida evolução que ocorreu no período cambriano.

Deve-se ter em mente que entre tantas características que tornam este local um interessante marco na paleontologia, é necessário destacar os principais fatores que o diferem, os quais são:

  • A excelente conservação dos animais de corpo mole
  • Certas morfologias não encontradas na fauna marinha atual
  • Vasta heterogeneidade da biota

Logo, os fósseis de Burgess nos fornecem informações importantes sobre a ecologia do período e a evolução dos seres vivos.

Além dos folhelhos, rochas sedimentares de outras granulometrias também podem conter fósseis. Se você deseja saber mais sobre petrologia sedimentar, acesse em nosso blog o artigo disponível sobre este tema.

A descoberta do Folhelho Burgess

Para falarmos sobre como o folhelho Burgess foi encontrado, é preciso contar a história do primeiro homem que estudou este local. Charles Doolittle Walcott era um administrador famoso por sua competência na área, porém, apresentava grande interesse pela paleontologia.

Ele conciliou sua carreira de administrador com a geologia, tendo ingressado no Serviço Geológico dos Estados Unidos em 1879, e em 1894 havia se estabelecido como diretor.

Walcott era um pesquisador ávido de rochas cambrianas e de períodos anteriores, pois se interessava pela questão da época que girava em torno da até então ausência de exemplares fósseis pré-cambrianos.

No inverno de 1909 Walcott andava a cavalo com sua esposa, até que o animal da mesma se desviou da trilha pelo qual seguiam e topou com uma placa onde havia um fóssil, chamando a atenção do pesquisador.

Devido às condições climáticas, não era possível iniciar um trabalho de campo para localizar a rocha mãe daquela lasca. Sendo assim, o administrador voltou no próximo ano com o objetivo de encontrar mais exemplares.

Obviamente, sua tentativa foi bem sucedida. O lugar onde Walcott achou seu primeiro exemplar não era longe do acamamento principal, portanto, como um bom geólogo de campo, ele conseguiu ter acesso ao tesouro antes escondido que o Folhelho Burgess guardava.

Walcott (com a mão posicionada na cintura) pesquisando no afloramento. Fonte: The Fossils of the Burgess Shale

Ele denominou o local encontrado rico em fósseis de leito phyllopod. A partir disso, trabalhou no afloramento diretamente de 1910 até 1913, tendo feito várias cadernetas de campo, diário e outras anotações, as quais posteriormente transformou em alguns trabalhos publicados.

Apesar do evidente fascínio pelo tema, as obrigações administrativas de Walcott o impediram de estudar mais a fundo os fósseis que ele mesmo coletou. Tal circunstância implicou em interpretações equivocadas no seu estudo.

Walcott faleceu no ano de 1927, e o resumo de seus trabalhos foi publicado de maneira póstuma por um colega em 1931.

A revisão nos estudos de Walcott

Apesar de em 1930 o afloramento no qual Walcott trabalhou ter sido reaberto por um professor de Harvard chamado Percy Raymond, foi na década de 60 que surgiram esforços que resultaram na revisão do Folhelho Burgess.

Um pesquisador italiano chamado Alberto Simonetta reinterpretou os animais da fauna e trouxe à tona questionamentos sobre a evolução desses organismos. Ademais, o Serviço Geológico do Canadá iniciou um projeto que visava aumentar as áreas de mapeamento e coletar fósseis do domínio do país, visto que os mais de 65.000 espécimes coletados por Walcott se encontravam no Instituto Smithsonian, em Washington.

O paleontólogo Harry Whittington trabalhou no folhelho com dois de seus alunos, chamados Derek Briggs e Simon Conway Morris, tendo outros geólogos compondo a equipe.

Harry Whittington no afloramento de Walcott. Fonte: The Fossils of the Burgess Shale

Este estudo foi realizado nos verões de 1966 e 1967. Eles se basearam no ponto achado por Walcott e então mapearam adjacências, o que resultou na descoberta de novas espécies. Entretanto, não acharam nada comparado à riqueza do primeiro acamamento estudado em 1910.

É a partir deste ponto da história da descoberta do Folhelho Burgess que se inicia uma reviravolta em toda sua interpretação.

O trabalho desenvolvido por Walcott é de extrema importância, e o modo como ele pesquisou não se difere muito do que Whittington e colegas fizeram.

Porém, Walcott utilizou o Folhelho Burgess como uma maneira de explicar a ausência de fósseis pré-cambrianos na época, argumentando que tais registros estariam em sedimentos localizados abaixo dos oceanos, como resultado de um período que nomeou de Lipaliano. Ademais, ele classificou os organismos encontrados  em ordens e famílias modernas.

O paleontólogo assim pensava pois seguia a linha de raciocínio darwiniana, que pelo estabelecimento da seleção natural, não compactuava com a ideia de tais fósseis não tinham precedentes com alta semelhança, mas na verdade eram fruto de uma rápida evolução (explosão cambriana).

Atualmente, sabemos que esta evolução acelerada não contraria os princípios de Darwin, mas pode ser explicada pela existência de um paleoambiente propício ao desenvolvimento da vida marinha, favorecendo o surgimento de novas espécies.

A geologia e fossilização do folhelho Burgess

Como citado anteriormente, o folhelho se destaca por preservar invertebrados em ótimo estado. Para tal, foram necessárias condições específicas de sedimentação. Uma delas é um soterramento rápido.

O folhelho Burgess no Cambriano era um ambiente de água marinha onde a biota habitava em bancos de lama próximos a uma escarpa. Paleontólogos explicam a preservação dos fósseis através de fluxos turbulentos que moveram os organismos de sua posição inicial,  e devido à rapidez do movimento e profundidade de aterramento, foi criado um ambiente desprovido de oxigênio.

Esta linha de raciocínio  é sustentada pelo fato da maioria dos exemplares apresentarem pouco decaimento, além de que são inexistentes marcas de vida orgânica, como trilhas.

A fossilização dos organismos do folhelho Burgess se deu pela substituição dos elementos originais por silicatos de alumínio e cálcio, o que concedeu aos fósseis uma aparência escura e reflexiva.

A desestruturação de algumas partes dos animais, consequente do decaimento, foi responsável por gerar certa bidimensionalidade na estrutura. Esta condição permitiu que os animais fossem projetados de modo tridimensional.

Harry Whittington reconheceu todas estas características e por isso foi capaz de estudar a fauna do folhelho Burgess de maneira mais concisa. Para seu trabalho, ele utilizou uma câmera lúcida, dispositivo composto por um jogo de espelhos que possibilita ao usuário enxergar o objeto de estudo de maneira planificada, fazendo com que assim seja possível desenhar sem desviar o olhar.

Exemplos clássicos da fauna de Burgess

Toda a história do folhelho Burgess é sem dúvidas fascinante, e ela não pode ser bem contada se não abordarmos alguns dos  intrigantes organismos identificados no afloramento de Walcott.

Classificar a fauna de Burgess foi um desafio para os cientistas, pois além da diversidade presente no local, em muitos casos não era possível relacionar os fósseis vistos com animais modernos.

Sidneyia inexpectans

O primeiro a ser descrito por Walcott, pertencente ao Filo Arthropoda. Sua cabeça tinha um formato convexo e seu tórax era formado por 9 segmentos. Estudos apontam que seu tamanho máximo era de 16 cm.

Sidneyia inexpectans. Fonte: The Fossils of the Burgess Shale

Sidneyia era carnívoro e podia se alimentar de animais compostos por partes duras. Vivia no fundo do mar se locomovendo através do nado ou caminhada.

Seus olhos protuberantes e antenas eram usados para procurar presas, que eram capturadas através de seus apêndices traseiros.

Marrella splendens

Também pertencente ao Filo Arthropoda. Um dos organismos mais comuns no folhelho Burgess. Apesar de ter sua espécie identificada, não possui correspondentes modernos.

Marrella splendens. Fonte: The Fossils of the Burgess Shale

Uma de suas características principais são dois espinhos que se projetam de cabeça e seguem pela lateral do corpo.

Estudos apontam que Marrella se alimentava através das partículas que formavam os depósitos sedimentares dos bancos de lama.

Aysheaia pedunculata

Pertence ao filo extinto chamado Lobopodia, se destaca pelo seu tronco cilíndrico. Este animal não tinha a cabeça separada do corpo, e em sua  parte frontal se localizava a boca.  Seu comprimento variava de 1 até 6 cm.

Aysheaia pedunculata. Fonte: The Fossils of the Burgess Shale

Enquanto estudava os fósseis desse organismo, Whittington descobriu vestígios de esponjas, levando-o à conclusão de que Aysheaia não só se alimentava delas, como também poderia usá-las para sua proteção.

Wiwaxia corrugata

A classificação deste animal é bastante divergente, variando conforme autor.

Wiwaxia corrugata. Fonte: The Fossils of the Burgess Shale

Além de sua aparência peculiar devido à presença de espinhos e escleritos na parte superior, se destaca por ser útil no cálculo da extensão do decaimento. Era um animal herbívoro que vivia na superfície dos sedimentos.

 A relevância científica do folhelho Burgess é atestada pelo seu reconhecimento como patrimônio mundial pela Unesco em 1981. Posteriormente, parques que possuem em sua área as Montanhas Rochosas foram aderidos à lista, formando um só sítio.

 É possível encontrar os mesmos organismos de Burgess em outros locais, como em depósitos na China e Groenlândia. Estas condições são mais um meio de se atestar a abundância de vida no cambriano.

 A descoberta de Walcott, assim como estudos dirigidos por outros cientistas, tornaram acessíveis as informações sobre a fauna do Folhelho Burgess, popularizando o local de maneira internacional e proporcionando à ciência respostas sobre o papel da evolução na diversificação de organismos.


Referências:

BRIGGS, Derek et al. The Fossils of the Burgess Shale. Washington e Londres: Smithsonian Books, 1994.

GOULD, Stephen Jay. Wonderful Life: The Burgess Shale and the Nature of History. Nova York e Londres: W.W Norton & Company,1990.

A origem dos organismos multicelulares: Transição Ediacara e Burgess Shale. Disponível em:<http://labs.icb.ufmg.br/lbem/aulas/grad/evol/especies/preposcambriano.html>

Imagem de capa – Folhelho de Burgess. Fonte: The Burgess Shale Geoscience Foundation.

ONTARIO MUSEUM.  The Burgess Shale, 2022. Discover the Burgess Shale in Yoho National Park, which preserves one of the world’s first complex marine ecosystems and is part of the Canadian Rocky Mountain Parks World Heritage Site. Disponível em:<https://burgess-shale.rom.on.ca/>

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